As Rosas calaram na Casa... “Uma coisa é silêncio, outra é ser silenciado. Lei do silêncio não faz sentido”.
Por Carlos Galdino
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Um jardim que florescia palavras
Durante anos, a Casa das Rosas foi mais do que um casarão de arquitetura clássica na Avenida Paulista. Era um refugio cultural. Um espaço vivo, onde poesia, literatura e arte encontravam o povo. Saraus, oficinas literárias, cursos, lançamentos de livros, peças teatrais e atividades formativas faziam parte da rotina. Era comum ver pessoas de todas as idades circulando pelos jardins e salas, ouvindo versos, lendo autores, aprendendo a escrever.
A Biblioteca Haroldo de Campos de Poesia e Literatura era o coração pulsante do lugar. Com um acervo precioso, reunia obras raras, traduções anotadas, correspondências e manuscritos. O espaço não era só de consulta, mas de formação e trocas afetivas.
"A primeira vez que participei de um sarau na Casa, senti que meu poema tinha casa. Era um lugar onde a palavra era recebida com respeito", lembra Mariana Dias, professora e poeta da zona leste de São Paulo.
"Participei de oficinas inesquecíveis ali. A Casa das Rosas me apresentou autores que mudaram a minha escrita. Hoje passo por lá e sinto como se tivessem apagado um pedaço da minha história", lamenta Ricardo Honório, escritor e ex-aluno de cursos da casa.
A história de uma casa que virou palavra
Localizada no número 37 da Avenida Paulista, a Casa das Rosas é um exemplar da arquitetura clássica francesa projetado em 1935 por Ramos de Azevedo — o mesmo arquiteto do Teatro Municipal e da Pinacoteca de São Paulo. Por décadas, foi residência da família Ramos de Azevedo. Apenas em 1986 o espaço foi tombado pelo Condephaat, e, em 1991, transformado oficialmente em centro cultural, sendo posteriormente reformulado para se tornar o Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em 2004.
A proposta inicial era simples e revolucionária: fazer da casa um ponto de encontro vivo entre a poesia e o povo. Um lugar onde a palavra pudesse habitar, circular, provocar. O poeta Haroldo de Campos, falecido em 2003, foi o patrono escolhido para dar nome à biblioteca e ao espaço, como reconhecimento por sua contribuição à literatura, à tradução e à crítica brasileira.
Com a criação da Poiesis – Organização Social de Cultura, em 2004, a gestão da Casa das Rosas passou a ser compartilhada por essa entidade em convênio com a Secretaria de Cultura do Estado. Ao longo da década de 2010, o espaço atingiu seu auge: milhares de visitantes por ano, saraus semanais, lançamentos de livros de autores consagrados e iniciantes, formações em escrita criativa, clubes de leitura e debates sobre os rumos da literatura brasileira.
A Casa não era apenas um equipamento cultural. Era um símbolo de resistência literária no coração da capital, uma trincheira delicada, onde a poesia era escutada como se fosse política e a política como se fosse poesia.
Frederico Barbosa foi o principal responsável pela criação da Casa das Rosas — Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, que por mais de dez anos abrigou a biblioteca do poeta paulista, um dos mais importantes acervos do país. Sob sua gestão, a Casa das Rosas promovia, todas as semanas, recitais de poesia, debates, palestras, exposições, festivais literários e outras atividades. O espaço se tornou uma referência internacional.
Após seu injusto afastamento, por ações de bastidores, esse importante centro cultural — assim como a Casa Guilherme de Almeida e outros equipamentos culturais do estado — vem sendo destruído por dentro. Foram extintos o Centro de Referência Haroldo de Campos e o Centro de Estudos de Tradução Literária da Casa Guilherme de Almeida, a biblioteca circulante da Casa das Rosas foi desmontada (onde foram parar os livros?) e, por fim, o próprio acervo de Haroldo de Campos foi jogado em um depósito em Barueri. A rica e diversificada programação da Casa das Rosas foi do mesmo modo desmontada. Hoje, Frederico Barbosa é alvo de um processo judicial por ter denunciado essa ação demolidora dos bárbaros e fascistas.
Quem são os nomes por trás da história?
Frederico Barbosa – Poeta, gestor e curador literário, foi o principal responsável pela implantação do modelo cultural da Casa das Rosas como centro de poesia. À frente da curadoria por mais de uma década, articulou uma programação intensa e democrática, que trouxe autores consagrados e jovens talentos ao mesmo palco. Sua demissão, tida como política, marcou o início do esvaziamento institucional do espaço. Hoje, é processado por denunciar o desmonte cultural. “A poesia virou alvo porque é um território de liberdade”, declarou recentemente.
Haroldo de Campos – Um dos maiores poetas e tradutores brasileiros, cofundador do movimento concretista ao lado de Augusto e Décio Pignatari. Estudioso voraz de línguas e formas poéticas, traduziu Homero, Dante, Goethe e inúmeros clássicos para o português. Seu acervo, hoje negligenciado, é uma preciosidade para pesquisadores e amantes da literatura. A presença de seu nome na Casa das Rosas não era apenas homenagem, mas uma afirmação de que a experimentação e o pensamento crítico merecem um lar.
Eliakin Rufino – Poeta acreano, compositor e educador, autor da frase que dá título a esta reportagem: “Uma coisa é silêncio, outra é ser silenciado. Lei do silêncio não faz sentido.” Com forte atuação na poesia falada e nas periferias, é símbolo de uma geração que entende o verso como grito. Sua presença aqui é mais do que literária — é ética e política.
Regina Facchini – Antropóloga, foi uma das estudiosas que acompanharam a presença da Casa das Rosas como território de gênero, diversidade e expressão de grupos marginalizados. Sua pesquisa com coletivos de poesia periférica reconhece o espaço como um dos poucos equipamentos do centro que acolhiam vozes dissonantes.
Jandira Silva – Educadora popular e bibliotecária, atuou como mediadora de leitura durante seis anos na Casa. Organizou clubes de leitura voltados a jovens da periferia e projetos de leitura em voz alta para pessoas em situação de rua. Em seu depoimento, afirmou: “Ler poesia ali era como acender uma vela no meio do caos da Paulista”.
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O desmonte: quando a poesia é silenciada
Desde 2022, a programação da Casa das Rosas vem sendo reduzida de forma abrupta. Oficinas encerradas, cursos suspensos, eventos literários cancelados. Em 2023 e 2024, o espaço praticamente se esvaziou. A agenda oficial mostra poucas atividades, muitas vezes desconectadas da tradição do local.
Pior: a poesia, que deveria ser o centro da programação, foi praticamente banida. Mesmo sendo um espaço dedicado à literatura, raramente se vêem eventos voltados ao gênero poético. Como se não houvesse mais lugar para a palavra.
A gestão do espaço, sob responsabilidade da Poiesis – Organização Social de Cultura, tem tratado a Casa das Rosas como um imóvel privado. O acesso é restrito, o diálogo com coletivos culturais foi interrompido e a sensação é de fechamento gradual.
"Hoje a Casa está sempre vazia. Parece mais um cartão-postal do que um espaço cultural. A poesia foi expulsa do lugar onde ela vivia", afirma Flávio Mendes, educador da zona sul.
"Os saraus desapareceram. A casa se fechou para a cidade. É como se o governo tivesse medo do que se diz num poema", comenta Renata Lopes, integrante de um coletivo de literatura periférica.
A poesia como ameaça?
Por que silenciar a poesia?
As perguntas podem soar estranhas à primeira vista. Afinal, quem tem medo de poemas? Que perigo pode haver numa metáfora ou num verso? Mas a história e o presente mostram que a poesia é, sim, uma ameaça — não por sua violência, mas por sua liberdade.
Poesia não obedece. Não se explica nem se curva. É insubordinada por natureza. Nas ditaduras, os primeiros a serem censurados são os escritores. Nos regimes autoritários, os livros desaparecem antes dos corpos. A palavra, quando livre, desestabiliza, denuncia, provoca. O poeta é, muitas vezes, o primeiro a gritar quando tudo em volta silencia.
Haroldo de Campos entendia isso profundamente. Sua obra não era só forma — era pensamento radical, crítica e invenção. A Casa das Rosas, enquanto viveu sob a luz da poesia, foi espaço de insurgência delicada. Ali se falava de amor e de revolução, de memória e de injustiça, de corpos e de sonhos. Ali se ensinava que a palavra pode ser afeto, mas também pode ser faca.
Talvez seja por isso que hoje tantos gestores tratem a poesia com indiferença ou desprezo. Não é que não a compreendam — é que a compreendem bem demais. Sabem que um sarau pode mobilizar mais do que um comício. Que um poema pode ensinar mais que um manual. Que a poesia, como dizia Adélia Prado, “é loucura e salvação”. E governo nenhum quer lidar com isso.
A Casa das Rosas incomodava. Incomodava porque era viva. Porque abria espaço para o dissenso. Porque ali a arte não era decorativa, era transformadora. Num país onde a cultura é tratada como adorno e não como base de pensamento, um lugar onde se diz a verdade em versos é perigoso.
É por isso que desmontam bibliotecas e cancelam oficinas. Que empurram o acervo de Haroldo para um depósito abafado em Barueri. Que fecham as portas para os coletivos literários. O que está em jogo não é apenas a manutenção de um prédio histórico, mas o direito de dizer. De dizer com beleza, com fúria, com amor — e com liberdade.
Porque, sim: a poesia ameaça. E é exatamente por isso que ela importa.
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Haroldo de Campos: o acervo silenciado
Em junho de 2023, um dos acontecimentos mais graves desse desmonte veio à tona: o acervo de Haroldo de Campos foi removido da Casa das Rosas e enviado a um depósito em Barueri, onde permanece entulhado, inacessível e fora de condições adequadas de preservação.
Haroldo de Campos é um dos maiores nomes da literatura brasileira. Sua obra foi traduzida em diversos idiomas e influenciou gerações de escritores. O acervo que carregava seu nome era um dos maiores tesouros da poesia nacional.
"O que fizeram com o acervo é um crime cultural. É como enterrar viva a história da poesia brasileira", denuncia Isabela Montenegro, pesquisadora de literatura e especialista em patrimônio cultural.
"O nome de Haroldo ecoava em cada sala daquela casa. Agora, com o acervo escondido, parece que quiseram calar não só o poeta, mas toda uma tradição crítica", aponta Luís Fernando Braga, tradutor e estudioso da obra concretista.
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A quem interessa o silenciamento?
A pergunta é inevitável: a quem interessa o desmonte da Casa das Rosas?
Especialistas e agentes culturais apontam que o esvaziamento faz parte de uma política mais ampla de sucateamento da cultura por parte do governo do Estado de São Paulo. Espaços críticos, voltados à formação cidadã, estão sendo silenciosamente desativados.
"Não é só sobre a Casa das Rosas. É sobre a tentativa de apagar a força da palavra, da memória, da reflexão. A poesia incomoda. E por isso está sendo silenciada", afirma Pedro L. Fonseca, poeta e ensaísta.
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O que dizem os documentos?
Menos eventos, menos poesia, menos povo: o apagamento em números
Para além dos depoimentos e do esvaziamento sentido na pele por artistas, poetas e frequentadores, os próprios dados públicos disponíveis revelam o desmonte silencioso da Casa das Rosas. Ao longo dos últimos anos, houve uma queda drástica na quantidade de eventos, cursos e atividades promovidas no espaço.
Basta comparar os números da própria agenda cultural da Poiesis, acessível por meio do site oficial da organização, para entender a escala da retração.

• Em 2018, a Casa das Rosas contabilizava cerca de 25 a 30 atividades mensais, incluindo saraus, feiras literárias, lançamentos, oficinas, mediações de leitura e exposições.
• Em 2023, esse número caiu para menos de 10 eventos por mês, muitos deles desvinculados da proposta literária original.
• Em 2024, houve meses com apenas 2 ou 3 atividades registradas, e frequentemente de natureza institucional, sem participação da comunidade artística local.

• O tradicional curso de Escrita Criativa deixou de ser oferecido.
• Oficinas voltadas a jovens e educadores desapareceram da programação.
• Não há mais editais públicos para curadorias participativas ou convocação de coletivos periféricos.

• A Biblioteca Haroldo de Campos, antes visitada por pesquisadores, estudantes e interessados do Brasil e do exterior, encontra-se inativa.
• Em junho de 2023, como revelado por fontes internas, todo o acervo foi transportado para um galpão em Barueri. A Poiesis não divulgou, até hoje, qualquer plano transparente de preservação, catalogação ou reabertura ao público.

• A Poiesis recebeu, via contratos de gestão com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, valores superiores a R$ 170 milhões entre 2020 e 2023, segundo dados do Portal da Transparência.
• No entanto, não há prestação de contas pública específica sobre os recursos aplicados diretamente na Casa das Rosas, nem explicações formais sobre a redução de atividades e a mudança de perfil da programação.
• Questionada por coletivos culturais e parlamentares, a Poiesis mantém silêncio institucional, sob o argumento de “reorganização interna” e “reestruturação de processos”.

• Artistas, pesquisadores e jornalistas relataram pedidos via Lei de Acesso à Informação** (LAI) feitos à Poiesis e à Secretaria da Cultura foram ignorados ou respondidos de forma evasiva.
• Não há relatório público sobre o estado atual do acervo de Haroldo de Campos.
Resistências e esperanças
Diante do abandono, artistas e coletivos têm se mobilizado. Manifestações simbólicas, protestos poéticos e campanhas nas redes sociais se multiplicam com hashtags como #SalveACasaDasRosas e #HaroldoNãoÉEntulho.
"Já fizemos leituras públicas na calçada da Casa. Ninguém nos atende, mas seguimos lendo poesia para lembrar que esse espaço era do povo", relata Júlia Tavares, ativista cultural.
A Casa das Rosas não pode ser apenas um prédio bonito. Ela é parte da história literária do país. Um espaço de escuta, de formação, de resistência. Calar suas atividades é calar a palavra. E sem palavras, não há futuro.
"Não vamos aceitar que o silêncio substitua a poesia. A Casa é nossa, e vamos lutar por ela", diz o coletivo Voz Ativa em nota recente.
A palavra que encontra casa (e depois é despejada)
Mariana Dias, professora da rede pública e poeta da zona leste, lembra com emoção de sua primeira participação em um sarau na Casa das Rosas, ainda em 2015:
“Meu poema era pequeno, inseguro, eu quase não li. Mas quando terminei, veio um silêncio tão bonito — não de julgamento, mas de escuta. Foi ali que senti que a poesia podia ter casa. Que o que a gente escreve na quebrada também tem lugar no centro. Depois voltei, fiz oficinas, aprendi sobre outras formas de escrever, descobri Haroldo, Hilda Hilst, Ana C. Hoje passo em frente e sinto como se alguém tivesse apagado meu nome da parede.”
Ricardo Honório, escritor, ex-aluno de cursos de tradução literária na Casa, ecoa esse sentimento de apagamento:
“Não era só uma programação. Era uma política pública de cultura de verdade. Com acesso gratuito, com mediação qualificada, com livros bons. A Casa das Rosas me deu formação literária e política. Hoje vejo o prédio e sinto como se tivessem desmontado uma parte de mim. É um tipo de violência que não aparece nos jornais, mas que marca por dentro.”
Júlia Tavares, ativista cultural e integrante do coletivo “Verso em Trânsito”, relata a dificuldade de diálogo com a nova gestão:
“Já tentamos agendar reunião, enviar proposta, oferecer oficinas voluntárias — nada. O espaço foi se tornando hostil. Cadeiras trancadas, salas vazias, vigilância constante. Fizemos uma leitura na calçada, do lado de fora. É simbólico: onde antes havia acolhimento, agora há portão fechado. Mas a gente segue lendo, como forma de não esquecer que aquele lugar era nosso também.”
Leandro Cruz, estudante e artista visual que frequentava o jardim da Casa para ler, também lamenta a transformação do ambiente:
“A poesia estava no ar, sabe? Não era só dentro dos eventos. Era o cara lendo Drummond encostado no muro, a senhora escrevendo haicais no caderno de espiral, o menino rabiscando frases no guardanapo. Agora é tudo paisagem de Instagram. Limpa, bonita — e morta.”
Tainá Barbosa, jovem poeta da zona norte, lembra da primeira vez que teve um poema publicado num zine feito em oficina na Casa:
“Aquilo mudou minha autoestima. Eu vinha de uma escola onde poesia era só prova. Lá, me trataram como artista. Gente preta, periférica, lendo e escrevendo no coração da Paulista. Isso é muito potente. É por isso que querem calar. Porque dá voz a quem nunca teve.”
Sem poesia, sem cidade
A Casa das Rosas nunca foi apenas um prédio bonito na avenida mais rica de São Paulo. Foi abrigo de vozes frágeis e potentes. Foi chão fértil para palavras insurgentes. Foi lar para a poesia em um tempo de pressa e ruído. Calar suas atividades é calar uma memória coletiva. É amputar a cidade de um de seus órgãos sensíveis.
Mas nem toda flor aceita ser arrancada sem luta.
Nas redes sociais, nas ruas, nos saraus improvisados em calçadas e vielas, o grito ecoa:
Poetas, professores, ex-alunos, leitores e coletivos se organizam. Fazem leituras públicas, entregam ofícios, constroem abaixo-assinados. Escrevem cartas abertas. Publicam manifestos. Organizam audiências. A palavra resiste — porque sabe que, se parar, morre.
Essa reportagem não é apenas uma denúncia: é uma convocação.
Convocação para quem ama livros.
Para quem crê na literatura como ferramenta de formação.
Para quem entende que poesia não é ornamento — é necessidade.
O que está em jogo não é só o futuro de um casarão.
É o futuro da nossa relação com a linguagem, com a cultura, com a liberdade.
Porque quando se cala uma casa como essa, não é só o silêncio que entra —
é o esquecimento.
E sem palavra, não há cidade.
Sem memória, não há povo.
Sem poesia, não há vida.
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Porque, no fim, calar as rosas é calar a palavra.
E sem palavra, não há cidade, não há memória, não há vida.
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