terça-feira, 21 de outubro de 2025

Cláudio Laureatti: o poeta-cenográfico que fez da palavra um palco itinerante

 

Cláudio Laureatti: o poeta-cenográfico que fez da palavra um palco itinerante

🖋️ Por Carlos Galdino
📅 São Paulo, 21 de outubro de 2025

 

 

Um sábado de silêncio e megafones

O sábado, 19 de outubro de 2025, amanheceu mais silencioso em São Paulo.
Não por falta de barulho — a cidade segue com suas buzinas, sirenes e vozes apressadas —, mas porque uma voz que atravessava todas elas se calou.
Cláudio Laureatti, poeta, ator, agitador cultural e fundador do lendário Sarau da Cesta, partiu sem aviso.
Pregou-nos a última peça, como quem encerra uma performance deixando o público entre o espanto e o aplauso.

Homem com as mãos na cabeça

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.Laureatti não foi um poeta qualquer. Era um desses raros artistas que transformam cada instante em gesto simbólico, cada palavra em palco.
Sua ausência não é silêncio — é reverberação. O eco de uma voz que, mesmo fora de cena, continua dizendo coisas que o mundo ainda precisa ouvir.

 

Entre o verbo e o corpo

Há poetas que escrevem; e há os que encarnam o poema.
Laureatti pertencia à segunda categoria.
Falava com o corpo inteiro — o corpo era seu microfone, sua pena, seu manifesto.

Nascido em São Paulo, em 1974, formou-se em Letras pela FFLCH-USP, onde concluiu também mestrado e doutorado em Literatura Brasileira.
Foi um acadêmico atípico: daqueles que levam o texto para o asfalto e trazem o asfalto para dentro da universidade.
Entre a biblioteca e o boteco, entre a teoria e a rua, Cláudio transitava com a naturalidade dos que pertencem a dois mundos e criam o terceiro.

Com registro de ator (DRT 25598 – SATED), encenou espetáculos como “Peabiru, o Caminho Suave” e “Carlos, não se mate!”.
Nas peças, o texto virava corpo, e o corpo, pensamento.
Publicou livros, participou de antologias e festivais literários, foi finalista do Projeto Nascente/USP e premiado com o Dom Quixote de la Perifa, concedido por coletivos da Zona Sul paulistana entre 2007 e 2008.

Homem falando no microfone

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.Mas acima de qualquer prêmio, Laureatti conquistou algo mais raro: o respeito das ruas.
Seu nome ecoa em saraus, bares, calçadas, centros culturais e auditórios — Cooperifa, Sarau da Paulista, Perifatividade, Sarau do Querô, Casa das Rosas, Patuscada, Rádio Cidadã, e em tantos outros palcos improvisados onde a poesia ainda resiste.
Era figura constante, e por vezes controversa, em cada um deles.
Não apenas frequentava os espaços: ele os transformava.

 

O Sarau da Cesta: o laboratório do verbo

Foi nos corredores da FFLCH-USP, no fim dos anos 1990, que Cláudio Laureatti e outros colegas decidiram criar um espaço de expressão chamado Sarau da Cesta — um gesto simples e revolucionário.
O nome, tirado de uma cesta de piquenique que servia de palco portátil, virou símbolo da arte coletiva, da insurgência estética e do humor como ferramenta crítica.

O Sarau da Cesta misturava crítica social, humor e experimentação estética. Era polêmico, alegre, controverso e profundamente cênico.
O evento extrapolou os muros da universidade e se tornou um dos principais tubos de ensaio poético de São Paulo.
Ali, a poesia dançava, a filosofia bebia café, o riso batia palma, e a plateia virava autora.Diagrama

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.cartaz original do “Sarau da Cesta – Tubo de Ensaio Poético”, colado em parede da Letras/USP.

De lá, saíram poetas, performers e ativistas que redefiniram a noção de literatura viva.
Laureatti era a alma cênica do projeto.
Sua fala atravessava as paredes e o tempo, lembrando que a poesia não é um luxo, é um gesto político.

 

O poeta cênico e o homem em conflito

Quem o viu em ação, sabe: Cláudio Laureatti era puro teatro.
Chegava à Casa das Rosas com um casco de televisão na cabeça, como se dissesse que a mídia estava vazia de sentido.
Usava cartola, megafone, instrumentos indígenas, sucatas, bandeiras — tudo o que pudesse virar metáfora e ruído.
Interrompia leituras, tirava o papel da mão das pessoas, fazia o público rir, pensar, às vezes se irritar.
Mas era exatamente nesse caos performático que sua arte ganhava força.

Tinha desafetos — e isso o fazia mais humano.
Tinha também uma oralidade que dominava o ar.
Sabia ser doce e ácido, generoso e provocador.
Como os grandes artistas, era cheio de contrastes.

Uma imagem contendo ao ar livre, estrada, edifício, pessoa

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.performance no Sarau da Paulista, com megafone e figurino performático.

E é preciso dizer: não é porque morreu que virou santo.
Mas também não é por ter sido polêmico que virou o diabo.
Era um homem — de carne, palavra e contradição.
E talvez seja justamente isso que o torna inesquecível.

 

Entre afeto e descontentamento

Eu tive amizade e desentendimento com Cláudio.
Discussões, divergências, pausas e reencontros.
A convivência com ele era um exercício de paciência e paixão, de admiração e choque.
Mas sempre houve respeito — e uma profunda ternura, mesmo no embate.

A penúltima vez que o vi foi na Câmara Municipal, durante o Encontro das Periferias.
A última, na Patuscada, na Morar do Coelho, em uma roda que misturava riso e ironia.
Eu disse:
— “Os saraus têm muitas panelas.”
E ele respondeu, sorrindo:
— “Quando não, né, Galdino?”

Ninguém sabia que estava doente.
E foi assim, sem ensaio nem despedida, que Laureatti fez sua última encenação: partir de repente, deixando um silêncio barulhento.

Homem com os braços para cima

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto. “Sarau da Cesta”, sorrindo diante da placa “Proibido cantar no banheiro (mas se quiser, pode)”.

 

Poemas para ouvir sua voz outra vez

“Sarau, Sarau, Sarau”

Em estado de graça
É hora de sua arte ganhar a praça
Tire seus poemas das gavetas
Apresente seu teatro aos vivos
Dance até raiar o dia
Contra a linha dura, a linha da cintura
Cultura é o que nos une.
(Fragmentos Mambembe, 2014)

 

“Manifesto para além dos saraus”

A gente não quer só poesia
A gente quer terra, comida, habitação
A gente quer a vida inteira
Para o homem, para a mulher,
Para o terceiro sexo no terceiro milênio
A gente quer causar incêndio
No coração da cidade
A gente não quer só poesia.
(Fragmentos Mambembe, 2014)

 

“Para além dos muros”

O problema não é o mundo, são os muros.
Muros que nos cercam e nos separam,
muros altos demais para o amor pular.
Do outro lado do morro,
preso no apartamento com televisão,
sonhei que posso passar spray
nas pedras dos muros das casas do mundo.
(Fragmentos Mambembe, 2014)

 

A mala, o megafone e o infinito

Em sua casa, ficou uma mala cheia de vestígios: livros, máscaras, chapéus, o megafone vermelho, bilhetes, panfletos de sarau.
Fragmentos de uma trajetória onde o riso e o protesto se encontravam.
Era como se cada objeto guardasse um pouco da energia cênica de um homem que fez da rua o seu palco e da poesia, um ato de resistência.

Bolsa em cima da mesa

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.a mala aberta com livros e o megafone — símbolo da itinerância poética.

 

O legado e o espelho

Cláudio Laureatti foi — e é — um tradutor de mundos.
Soube unir o pensamento acadêmico e a urgência da periferia, o discurso culto e o palavrão poético, a crítica social e a gargalhada.
Entre a universidade e o beco, ele construiu pontes.
Deixou marcas em projetos, livros, conversas e corações.

Mas sobretudo, deixou uma lição:
a poesia não é o contrário da vida — é o que a mantém em movimento.

Hoje, cada microfone aberto, cada sarau de esquina, cada leitura em praça pública carrega um pouco da energia que ele espalhou.
Porque Laureatti não morreu — multiplicou-se.

Grupo de pessoas em pé lado a lado

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Epílogo: nem santo, nem diabo — poeta

A morte de um artista costuma produzir mitos: os que o santificam e os que o demonizam.
Com Laureatti, nenhuma das duas versões lhe faz justiça.
Ele foi um homem intenso, inquieto, contraditório e, por isso mesmo, profundamente verdadeiro.
Não é porque morreu que virou santo.
Mas também não é por ter vivido como quis que virou o diabo.
Foi, simplesmente, poeta.

Um poeta que fez da vida um palco, e do palco, uma trincheira.
Que amou, brigou, riu, gritou, perdeu, venceu, performou — e, no fim, partiu como viveu: em cena.

 

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Convite Especial – Lançamento de Canto do Alaúde

 




Convite Especial – Lançamento de Canto do Alaúde


Rosani Abou Adal em nova obra

Escritora, poeta, jornalista e publicitária, Rosani Abou Adal é editora do jornal Linguagem Viva desde 1989, vice-presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo e autora de livros premiados no Brasil e no exterior.

Agora, Rosani apresenta seu mais novo livro:


Canto do Alaúde

Uma coletânea de 16 poemas em defesa da Palestina, dos povos árabes e pela paz mundial, com ilustrações da artista Janaina Adal da Costa Millan e prefácio de Ronaldo Cagiano.

Edição independente – Selo Linguagem Viva


60 páginas – R$ 40,00

Desenhos A4 em cores – R$ 10,00 cada


Temática

Poesia que denuncia a violência, resgata a ancestralidade árabe e aponta para a esperança de um mundo sem guerras, onde a música e a palavra unem os povos.


Palavra do crítico

“Rosani abre o volume dedicando o trabalho à paz de todos os povos e nações, invocando o alaúde como metáfora de união universal.”

 Ronaldo Cagiano




📅 Lançamento Oficial

📍 Sarau Jabaquara – Estação da Poesia

 📖 Lançamento do livro Canto do Alaúde de Rosani Abou Adal

 🗓 28 de setembro de 2025 (domingo)

 ⏰ 15h

 📌 CEU Caminho do Mar – Jabaquara, São Paulo/SP


segunda-feira, 7 de julho de 2025

Quando a poesia estende o tapete vermelho para a periferia

 Quando a poesia estende o tapete vermelho para a periferia


Por Carlos Galdino – São Paulo, julho de 2025


                                   Era só mais uma tarde fria em São Paulo. Mas dentro daquela sala, havia um calor difícil de descrever. Um calor que vinha dos olhos, dos abraços, daquilo que ninguém vê, mas se sente. No meio do público, entre livros e sorrisos, uma mulher nordestina, humilde, emocionada, com o coração batendo mais forte do que nunca: Edenilda.

Na última sexta-feira, entre olhares tímidos e sorrisos cheios de verdade, Edenilda atravessou o salão com a alma em festa. Mulher simples, mãe, moradora da periferia, ela teve seu nome eternizado em versos. Sua voz, antes abafada pelo cotidiano duro da cidade grande, agora ecoa nas páginas da coletânea Poetas da Liberdade.

Foi num auditório modesto, mas cheio de emoção, que Edenilda lançou o seu primeiro poema publicado — o evento aconteceu no Cama e Café, prédio histórico no centro velho da cidade de São Paulo, um espaço de acolhimento, resistência, luta e afeto.

Não foi uma tarde de celebridades, flashes ou manchetes — mas foi, para ela, o maior tapete vermelho que a vida poderia estender. Seus filhos estavam ali, com os olhos marejados de orgulho. O marido também. E cada abraço recebido era como um prêmio, uma medalha invisível no peito de quem sempre lutou em silêncio.

Edenilda, nervosa e tímida, trazia no olhar a alegria de quem, pela primeira vez, foi vista. De quem, por meio da palavra, foi reconhecida. Numa sociedade que tantas vezes fecha portas, a literatura decidiu abrir os braços. E a poesia, generosa, convidou-a a entrar.

Ver essa mulher, com seus versos nas mãos, sendo chamada de “autora”, sendo reconhecida como alguém que tem o que dizer — isso não é pouco. Isso é tudo. É a poesia fazendo o que mais sabe: dar voz a quem quase nunca é ouvido.

Edenilda não estudou Letras, não frequentou universidades, nem participou de grandes rodas literárias. Mas ela viveu. E viver, com intensidade, é também uma forma legítima de literatura.

Naquela tarde, ela subiu ao palco, falou poucas palavras, mas disse muito. O olhar dela era de quem compreendia, pela primeira vez, que a sua história também importava. Que ela também cabia no livro da vida — e no da literatura.

A emoção de seus filhos ao vê-la ser aplaudida não era orgulho à toa. Era reconhecimento. Era justiça poética. E social.

Essa tarde não será capa de jornal. Não viralizará nas redes. Mas, para Edenilda, significou o mundo. E não há estatística que mensure o valor de uma mulher que, mesmo sem saber, sempre foi poesia. Só precisava de um espaço onde pudesse se ler em voz alta.

Quantas Edenildas ainda estão em silêncio por aí? Quantas histórias potentes ainda não encontraram espaço entre as páginas de um livro?

Essa coletânea, esse gesto, essa presença — tudo isso nos ensina que é preciso acreditar. Que a palavra é uma ponte. Que a literatura, quando é feita com verdade, tem o poder de incluir, de curar, de libertar.

Edenilda entrou na literatura pela porta da frente. E com ela, entraram tantas outras mulheres que agora, talvez, se sintam autorizadas a escrever também.

Porque quando uma mulher como ela publica um poema, o mundo inteiro se reorganiza. E isso não é exagero. É poesia acontecendo de verdade.


Carlos Galdino
Poeta, radialista e graduado em Direito. Escreve com o coração voltado para as margens, onde tantas histórias precisam ser contadas.  


segunda-feira, 30 de junho de 2025

Um Grito Urgente pela Memória: Caruaru e a Necessidade Inadiável do Museu da Imagem e do Som


 

Um Grito Urgente pela Memória: Caruaru e a Necessidade Inadiável do Museu da Imagem e do Som


Caruaru, a "Capital do Forró", pulsa com uma energia cultural que transcende as fronteiras do São João. Terra de grandes vozes, microfones icônicos, redações aguerridas e cineclubes vibrantes, a cidade é um celeiro inesgotável de talentos e histórias que moldaram não apenas o Agreste pernambucano, mas também o cenário cultural e jornalístico do Brasil. No entanto, o tempo, implacável, ameaça apagar a memória dessas figuras e feitos, diluindo um legado que, se não for preservado, corre o risco de desaparecer da lembrança coletiva. Diante dessa realidade alarmante, emerge um clamor uníssono: a criação urgente do Museu da Imagem e do Som de Caruaru (MIS Caruaru). Mais do que um espaço físico, o MIS se apresenta como uma política pública de memória, educação, cultura e identidade local, um bastião de resistência contra o esquecimento.

Caruaru: Berço da Comunicação Popular e Artística

A história da comunicação em Caruaru é um fascinante mosaico de pioneirismo e paixão. Remonta aos anos 1910, com a circulação dos primeiros jornais impressos e revistas culturais que serviram de voz para a intelectualidade local. Publicações como o Jornal A Defesa, fundado em 1917, o mais antigo periódico da cidade, de forte cunho político e literário, foram verdadeiras escolas de pensamento e cidadania. O Jornal de Caruaru, de 1961, destacava-se por suas reportagens investigativas, enquanto o Jornal Vanguarda, da década de 1970, ecoava a efervescência cultural do Agreste. Não podemos esquecer a Revista Splendide, de circulação independente entre os anos 1950 e 1970, que documentava festas, literatura, artes e os costumes da elite local, traçando um retrato vívido de uma época.



O Rádio Caruaruense: Voz da Identidade e da Resistência

O rádio em Caruaru transcendeu a função de mero meio de comunicação; ele foi companhia, informação e, acima de tudo, identidade. As ondas sonoras das grandes emissoras moldaram a paisagem da cidade e se tornaram a trilha sonora de gerações. A Rádio Difusora de Caruaru, fundada em 6 de setembro de 1951, foi a primeira emissora da cidade, um marco da comunicação popular no Agreste. Poucos anos depois, em 31 de agosto de 1958, a Rádio Cultura do Nordeste surgiu, reconhecida como a primeira rádio genuinamente caruaruense, com uma forte identidade regional que a diferenciava.  

Em 25 de outubro de 1966, a Rádio Liberdade de Caruaru iniciou suas transmissões, destacando-se por um jornalismo forte e uma programação popular e esportiva que conquistou o coração dos ouvintes. A evolução da Rádio Difusora, que se tornou a Rádio Jornal Caruaru, afiliada ao Sistema Jornal do Commercio, consolidou o rádio caruaruense como um dos principais veículos da região.



Profissionais que se tornaram ícones, cujas vozes ressoam até hoje na memória coletiva, foram a espinha dorsal dessas emissoras. Tony Gel, com sua habilidade no rádio político e popular, Wilson Bezerra, a voz lendária da Rádio Liberdade, e Clóvis Gonçalves, referência no jornalismo esportivo, são apenas alguns exemplos. Robério Queiroz, com seus comentários influentes, e Ivan Bulhões e César Lucena, que marcaram a cobertura regional, também contribuíram para a rica tapeçaria do rádio caruaruense. Esses nomes não apenas narraram a história da cidade, mas a construíram com suas palavras e suas presenças marcantes no dia a dia da população.


A Televisão e o Cinema: Janelas para o Mundo e Espelhos da Alma Caruaruense

Caruaru não se limitou ao rádio e ao impresso; a cidade também foi pioneira no audiovisual do interior nordestino. A TV Tropical, fundada em 1979, despontou como uma das primeiras emissoras de televisão do interior de Pernambuco. Com produção local vibrante, programas de auditório e um jornalismo que falava diretamente com a comunidade, a TV Tropical abriu as portas para o desenvolvimento televisivo na região. Posteriormente, a TV Nova Nordeste – Caruaru surgiu, com uma vocação educativa e comunitária que a diferenciava. Além disso, retransmissoras de grandes redes nacionais como Globo, Record, Band e SBT passaram a gerar conteúdos híbridos, mesclando o local e o nacional, mas sempre com um olhar atento para as peculiaridades de Caruaru.

No entanto, a ausência de um museu ou de uma política pública de acervo resultou em uma tragédia cultural silenciosa: grande parte do que foi produzido por essas emissoras se perdeu. Fitas mofadas, arquivos apagados e o simples esquecimento ameaçam apagar registros valiosos da história e da cultura caruaruense.

O cinema também desempenhou um papel fundamental na formação da identidade visual da cidade. Nos anos dourados, Caruaru contava com salas que eram verdadeiros templos da sétima arte. O Cine Regal, ativo entre as décadas de 1940 e 1970, juntamente com o Cine São Luiz e o Cine Capitólio, exibiam um repertório diversificado que ia desde clássicos europeus até as populares chanchadas e filmes nacionais, reunindo famílias e amigos em torno da tela grande. O Cine Clube Caruaruense, fundado por estudantes nos anos 1980, foi um espaço vital para a exibição de filmes alternativos e a promoção de debates culturais, enriquecendo o cenário artístico da cidade. Com o fechamento dessas salas de rua, Caruaru não perdeu apenas espaços de exibição, mas também uma parte significativa de sua memória coletiva, da experiência de ir ao cinema e compartilhar a magia da projeção.

Nomes que ecoam na cultura caruaruense:

A riqueza cultural de Caruaru é indissociável dos nomes que a construíram e a projetaram. Além dos comunicadores já mencionados, a cidade é celeiro de escritores, cronistas, atores e artistas da cena que deixaram e continuam deixando sua marca.

Escritores e Cronistas:

  • Nelson Barbalho: Historiador, cronista e autor do indispensável “Caruaru, ontem e hoje”, sua obra é um pilar para quem busca compreender a trajetória da cidade.
  • Luiz Lua Gonzaga Filho (Luizinho de Gonzaga): Poeta e memorialista, com uma sensibilidade única para retratar as nuances da vida caruaruense.
  • Rosimar Lemos: Escritora e difusora da literatura popular, com um trabalho que valoriza as raízes culturais da região.
  • José Condé: Autor reconhecido nacionalmente, que elevou o nome de Caruaru no cenário literário brasileiro.
  • José Carlos da Silva: Autor, editor e incansável defensor da cultura caruaruense, com uma atuação fundamental na preservação da memória local.

Atores e Artistas da Cena:

  • Luís Vieira: Ator e músico, nome nacional nos anos 1960, que levou o talento caruaruense para além das fronteiras estaduais.
  • José Pimentel: Caruaruense de adoção, consagrado por seu papel icônico como Jesus nos espetáculos da Paixão de Cristo, emocionando multidões ano após ano.
  • Arary Marrocos: Com uma trajetória que vai do teatro ao audiovisual, Arary é um exemplo da versatilidade artística da cidade.
  • Sandro Lins: Ator e produtor ligado intrinsecamente à cena cultural da cidade, com uma atuação constante e relevante.
  • Germano Rabello: Criador de espetáculos populares, que leva a arte para o povo e mantém viva a tradição teatral de Caruaru.

Esses nomes, e tantos outros, são a prova viva da efervescência cultural que marca Caruaru. Eles são a alma da cidade, e suas contribuições merecem ser não apenas lembradas, mas celebradas e acessíveis a futuras gerações.


O Projeto do MIS Caruaru: Uma Proposta Abrangente de Memória

A criação do Museu da Imagem e do Som de Caruaru (MIS Caruaru) não é um luxo, mas uma necessidade urgente. A proposta do MIS Caruaru é abrangente e visionária, concebida para ser um espaço de resistência simbólica e de construção de memória. Entre suas principais frentes de atuação, destacam-se:

  • Acervos de gravações históricas de rádio e TV: Resgatar, digitalizar e disponibilizar programas, noticiários, entrevistas e todo o material audiovisual produzido ao longo das décadas pelas emissoras caruaruenses. Isso inclui desde os primeiros registros sonoros da Rádio Difusora até os telejornais da TV Tropical, garantindo que essas vozes e imagens não se percam no tempo.
  • Arquivamento de jornais e revistas históricas da cidade: Preservar e organizar coleções completas de periódicos como "A Defesa", "Jornal de Caruaru" e "Revista Splendide", permitindo que pesquisadores, estudantes e o público em geral tenham acesso a esses documentos que narram a vida e a política local.
  • Espaços para oficinas de comunicação, fotografia, audiovisual e jornalismo: O MIS não será apenas um local de contemplação, mas um centro dinâmico de aprendizado. Essas oficinas capacitarão novos talentos, transmitindo o conhecimento e as técnicas das gerações passadas.
  • Exposições sobre grandes nomes da mídia caruaruense: Mostras dedicadas a personalidades como Tony Gel, Nelson Barbalho, José Pimentel e tantos outros, com objetos pessoais, documentos, fotos e depoimentos que revelem suas trajetórias e suas contribuições.
  • Memoriais digitais, com escuta pública e acervo online: Expandir o alcance do museu para o ambiente digital, permitindo que o acervo seja acessado de qualquer lugar do mundo. A escuta pública, por meio de depoimentos e histórias orais, enriquecerá ainda mais o material.

Para que essa visão se concretize, é fundamental uma articulação multissetorial. Reivindicamos que a Câmara de Vereadores de Caruaru elabore e aprove um Projeto de Lei para a criação e regulamentação do MIS, em parceria com a Secretaria de Cultura do município, com o apoio irrestrito do Governo do Estado de Pernambuco e da sociedade civil. As emissoras de rádio e TV da cidade devem ser parceiras institucionais nesse processo, doando acervos, cedendo espaços para exposições temporárias e promovendo campanhas de mobilização pública que envolvam a comunidade.

Dados Culturais Atuais: Um Cenário em Transformação

A Caruaru de hoje, mesmo com sua vocação cultural tão enraizada, reflete as transformações dos tempos. Os dados culturais atualizados indicam essa dinâmica:

  • Emissoras de rádio: Atualmente, a cidade conta com 8 emissoras principais (AM/FM), incluindo nomes consolidados como Liberdade, Cultura, Jornal, Cidade, Nova FM e CBN Caruaru. A diversidade de programações atende aos mais variados públicos.
  • Emissoras de TV: São 4 retransmissoras regionais (Globo, SBT, Record, TV Nova), que mesclam o conteúdo nacional com noticiários e programas locais, mantendo a população informada e conectada.
  • Jornais impressos ativos: O formato físico reduziu-se a apenas 2 periódicos locais, refletindo a migração do consumo de notícias para as plataformas digitais.
  • Salas de cinema: Concentradas no Caruaru Shopping, são 6 salas da rede Cinépolis, um contraste com a época dos grandes cinemas de rua, mas que ainda garantem o acesso à produção cinematográfica.

Esses dados reforçam a importância de um MIS que não apenas olhe para o passado, mas também documente o presente, compreendendo as mutações e desafios da comunicação e da cultura em Caruaru.


Preservar a História é Dar Voz ao Futuro

Caruaru é gigante em sua criatividade, em sua capacidade de comunicação e em sua resiliência. Seu povo é vibrante, e seus artistas, comunicadores, cronistas e repórteres merecem ser lembrados e celebrados. É inaceitável que a história da cidade, essa narrativa rica e multifacetada, continue esquecida em porões, em fitas mofadas ou em arquivos digitais que um dia serão apagados.

O Museu da Imagem e do Som de Caruaru não é apenas um projeto; é um imperativo moral e cultural. É um ato de respeito àqueles que construíram a identidade da cidade, um investimento na educação das futuras gerações e um elo fundamental na construção de um futuro que valorize suas raízes.

Por uma Caruaru que respeita sua história, valoriza sua cultura e sonha alto com o futuro. MIS Caruaru já!


Carlos Galdino Poeta, jornalista e cronista cultural Instagram: @carlosgallldino

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Heróis ou Criminosos? A perversidade da cultura de homenagens aos algozes do povo brasileiro

 



Heróis ou Criminosos?

A perversidade da cultura de homenagens aos algozes do povo brasileiro

Por Carlos Galdino

Há um pacto silencioso, mas poderoso, firmado entre a história oficial e a elite dominante deste país. Um pacto que transforma homens brancos, ricos, violentos e opressores em heróis nacionais. Um pacto que escreve o nome de criminosos em placas de rua, monumentos, praças, cidades e escolas, enquanto apaga os nomes dos verdadeiros construtores deste país: os trabalhadores, os nativos, os negros, as mulheres, os anônimos que foram a espinha dorsal da nação.

Esse pacto é perverso. E precisa ser rompido.

Uma pátria que homenageia seus algozes

Quem são os nomes que estampam nossas avenidas, escolas e bairros? Coronéis, barões do café, senhores de escravizados, militares golpistas, políticos corruptos, padres inquisidores, bandeirantes que mataram e estupraram populações inteiras.

A história do Brasil é coberta de estátuas de pedra e bronze que envergonham o futuro e insultam a memória.

Quantas cidades homenageiam bandeirantes? Quantos bairros têm o nome de fazendeiros escravocratas? Quantas escolas levam o nome de generais da ditadura?

Quantos homens que estupraram, torturaram, exploraram, mandaram matar, hoje são lembrados como se fossem benfeitores?

Enquanto isso, os verdadeiros heróis — os anônimos — são esquecidos.

  • Onde está a rua que homenageia a mulher negra que lavou roupa a vida inteira e criou filhos sozinha?

  • Onde está o nome do índio que morreu defendendo seu território?

  • Onde está a estátua do pedreiro que ergueu as casas, do operário que ergueu as fábricas, da cozinheira que alimentou gerações?

Nossa geografia urbana é um cemitério simbólico da justiça histórica.

A cidade homenageia o violador, e silencia a vítima.

A elite e sua estratégia de heroificação

Não é coincidência. É projeto.

A elite que se manteve no poder desde a colônia — com breves interrupções populares rapidamente reprimidas — sempre soube a força que há em controlar a memória coletiva. E fez isso com maestria.

Elevou seus pares à condição de heróis. Imortalizou os nomes de seus aliados. E usou o Estado para sacramentar o esquecimento dos outros.

Assim, coronéis viraram fundadores de cidades.

Senhores de escravos viraram barões homenageados.

Militares que derrubaram presidentes e rasgaram constituições viraram nomes de avenidas.

Golpistas viraram patriotas.

Essa é uma forma de violência simbólica que perpetua desigualdades, reverencia opressores e cala os oprimidos.

É hora de reescrever as placas e descer as estátuas

Não se trata de “apagar a história” — esse é o discurso desesperado de quem sempre teve a caneta e o mármore à sua disposição.

Trata-se de corrigir o erro, denunciar o falso heroísmo, desconstruir a idolatria do poder e da violência.

Precisamos de leis que obriguem a revisão de nomes de ruas, escolas, edifícios públicos, cidades e monumentos.

Precisamos exigir que:

  • Homens que participaram de regimes ditatoriais não sejam homenageados.

  • Senhores de escravos não sejam exaltados como fundadores ou benfeitores.

  • Militares golpistas não sejam chamados de patriotas.

  • Estupradores, bandeirantes, assassinos de indígenas e negros não sejam eternizados em praças.

A estátua de um bandeirante armado, olhando altivo para o horizonte, é uma ofensa a cada povo originário que teve sua aldeia queimada.

Uma escola com nome de general da ditadura é uma agressão a cada mãe que enterrou um filho torturado.

Uma avenida com nome de fazendeiro escravocrata é um tapa na cara de cada neto de negros sequestrados e tratados como gado.

Precisamos de uma nova toponímia: popular, justa, plural

Imagine uma cidade onde as ruas levem o nome de mulheres lavadeiras, líderes quilombolas, professoras primárias, indígenas expulsos da terra, artistas populares, mães solos, poetas esquecidos, operários mortos em acidentes de trabalho, crianças vítimas de violência.

Gente de verdade. Gente do povo. Gente que construiu este país com sangue, suor e silêncio.

Não queremos vingança.

Queremos memória justa.

Queremos lembrar de quem merece ser lembrado.

E parar de aplaudir quem deveria ter sido julgado.

Conclusão: nenhuma rua para quem nos violentou

O Brasil não pode seguir como um país que venera seus algozes e ignora seus mártires.

Não é aceitável que a cidade onde vivemos, amamos, lutamos e morremos seja um mapa de homenagens a criminosos históricos.

É hora de enfrentar o passado com coragem.

De exigir leis. De rever nomes. De derrubar estátuas.

E de escrever, com justiça e memória, uma nova história nas placas das ruas.

Brasil, vamos parar de aplaudir quem nos violentou. Vamos homenagear quem nos construiu.


segunda-feira, 16 de junho de 2025

Brasil, vamos parar de mentir oficialmente

 


Brasil, vamos parar de mentir oficialmente

Por Carlos Galdino – poeta, bacharel em direito

É hora de encerrar, de uma vez por todas, a grande farsa da história oficial brasileira. Aquela repetida desde os primeiros bancos escolares até os palanques políticos e os desfiles do 7 de setembro: a mentira bem-vestida de que o Brasil foi “descoberto” em 1500 por Pedro Álvares Cabral e formado a partir de uma suposta harmonia entre “três povos”: o português, o africano e o “índio”.

Essa narrativa não é apenas simplificadora. É deliberadamente forjada. E o mais grave: continua sendo ensinada como verdade, consolidando um projeto histórico que apaga, manipula, silencia e exclui.

O Brasil jamais foi descoberto. Foi invadido.

Em 1500, Cabral não descobriu nada. Já existia gente aqui. Povos diversos, línguas múltiplas, culturas complexas. Povos nativos, não “índios” — termo equivocado, imposto pelo erro de Colombo e perpetuado pela conveniência colonial.

E mais: muito antes de Cabral, os espanhóis já haviam passado por aqui. Navegadores como Vicente Yáñez Pinzón exploraram o litoral nordestino em 1493. O próprio Tratado de Tordesilhas, de 1494, demarca terras que ainda nem haviam sido “descobertas” oficialmente. Cabral veio cumprir um acordo geopolítico — não encontrar um novo mundo, mas tomar posse de um que já era conhecido.

A história brasileira começa, portanto, com uma mentira e um ato de violência. Não há “descobrimento”. Há invasão, saque e silenciamento de vozes milenares.

A falsa tríade: portugueses, africanos e “índios”

O discurso dos “três povos formadores” virou um mantra da oficialidade: portugueses colonizadores, africanos escravizados e “índios” como pano de fundo tropical. Uma simplificação perversa que serve para maquiar a complexidade da formação nacional — e principalmente para excluir deliberadamente os outros povos que estiveram aqui e ajudaram a construir este país.

Não se fala das ocupações francesas no Maranhão e no Rio de Janeiro no século XVI. Nem dos holandeses, que tomaram boa parte do Nordeste e governaram o Recife por mais de 20 anos, promovendo experiências de liberdade religiosa e ciência. Não se ensina nas escolas que os espanhóis dominaram partes do Norte, do Sul e da Amazônia, deixando marcas profundas em várias regiões.

Tampouco se reconhece o papel de sírio-libaneses, judeus sefarditas, italianos, alemães, gregos, japoneses, bolivianos, ciganos, haitianos e tantos outros que chegaram ao Brasil antes mesmo das grandes ondas de imigração do século XIX.

A língua desmente a mentira

Se a história não conta, a língua denuncia.

Nosso vocabulário é um campo de provas da multiplicidade cultural que foi silenciada.

Do árabe, herdamos palavras como:

  • Alface (al-khass)

  • Açúcar (as-sukkar)

  • Algodão, almofada, alicate, açougue, azulejo, xarope, nadir, jirau, narguilé

    — marcas da presença árabe-muçulmana e dos cristãos-novos que fugiram da Inquisição.

Da França, herdamos:

  • Abajur, garçom, maquiagem, ballet, menu, chef, vernissage, moda, boné, paletó, charme, elegância — influência forte da elite francesa no século XIX, que moldou o gosto, a gastronomia e o estilo brasileiro.

Da Espanha, vêm palavras como:

  • Rancho, mula, guitarra, churrasco, fiesta, compadre, gringo, muchacha, patrão, mate, estância — incorporadas especialmente no Sul e Centro-Oeste.

E dos holandeses? Ainda que a ocupação tenha sido breve, restaram termos náuticos e técnicos como:

  • Iate (do holandês jacht),

  • Estiva, bloco, baque, bater, camburão — todos com traços da presença flamenga no Nordeste.

Nossa fala cotidiana é um documento vivo das influências que a história oficial insiste em esconder.

Uma história escrita pelo poder para servir ao poder

Quem conta a história sempre teve o controle da pena — e do que ela cala.

A construção do mito nacional serviu (e ainda serve) para legitimar uma elite, justificar desigualdades e manter uma aparência de “unidade nacional” forjada com silenciamentos.

O Brasil não é o resultado de uma mestiçagem pacífica.

É o campo de uma guerra colonial permanente.

A história contada apaga os quilombos, apaga as aldeias dizimadas, apaga as revoltas populares, os saberes suprimidos, os idiomas assassinados, os corpos invisibilizados.

Reescrever é resistir

O que propomos aqui não é apenas uma revisão historiográfica.

É um ato de justiça.

Precisamos de uma história que diga o nome dos povos que nos formaram — inclusive os que chegaram em menor número, mas deixaram grandes marcas.

Precisamos parar de mentir para nossas crianças, para nossos estudantes, para nossos cidadãos.

O Brasil não nasceu em 1500. O Brasil não foi descoberto. O Brasil foi invadido, silenciado, e depois reinventado por quem resistiu.

É hora de dizer os nomes silenciados. De aprender outras versões. De recontar o Brasil.

De assumir que nossa formação é múltipla, dolorosa, plural, complexa e belíssima — justamente por isso.


Brasil, vamos parar de mentir oficialmente.

Chega de história escrita por quem quis apagar os outros.

Agora é hora de escutar todas as vozes.


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