segunda-feira, 28 de novembro de 2016

No caminho das letras desde cedo


Vai Carlos, vai ser grande... Parece que foi assim que o destino delineou a vida de Carlos Galdino.
Nascido em São Paulo, sua mãe o entregou aos cuidados da avó que morava em Pernambuco com apenas um ano de idade por não ter condições de criá-lo Essa avó foi a responsável por sua estrutura de valores e princípios. Mas foi a essência desse menino que mais ganhou com a influência da dona Judite. Quando ela dizia: “Você é diferente dos meninos daqui", tal fala ia construindo dentro do pequeno Carlinhos uma gana pelo conhecimento. Ávido, ia buscando formas de ampliar o seu saber. Se não havia livros disponíveis, melhorava sua leitura lendo o Diário Oficial, que era o único veículo escrito que chegava na localidade.
Como a única pessoa letrada de sua região, dona Judite era a escriba de todos e também a professora dos meninos. Era ela quem mandava notícias aos parentes distantes a pedido dos moradores da sua comunidade. Expressava por meio da escrita as saudades daqueles que ali estavam. Essas cartas transmitiam bons agouros às pessoas queridas, e o menino Carlinhos assistia a tudo maravilhado, como se a avó tivesse o poder de transformar a vida dos destinatários a partir dos votos emitidos nas cartas.
Aos olhos do menino, esse era um dos encantamentos da dona Judite, o poder de melhorar a vida das pessoas pela escrita. Que esta te encontre com saúde —, na ingenuidade da sua visão, era mais do que um desejo contido nas cartas. Era como se uma magia acontecesse.
Além de ser escriba e professora, essa mulher também era mestre na solidariedade. Era ela quem cuidava daqueles doentes que ninguém tinha coragem de chegar perto temendo a contaminação. Era ela quem buscava diminuir um pouco da dor daqueles que sofriam no corpo sua pena, dando banho, curando as feridas e alimentando a barriga e a alma.
No sertão um copo de água é riqueza e ela deixava esse bem à disposição de todos. Esperar pelo ônibus, que ia para a cidade nos dias de feira, na frente do sítio da dona Judite, era a certeza de ter um banco de pedras para sentar, construído por ela mesma, e um copo de água fresca debaixo daquele sol escaldante. Mas isso não era tudo, porque ela não tinha somente a preocupação de confortar o corpo, sua atenção ia além. Era preciso alegrar os olhos, e por isso ela cultivava um jardim. Bastava um resto de água no açude para que as plantas continuassem vivas e os passantes pudessem admirá-las. Talvez a importância deste gesto só tenha sido compreendida pelo menino Carlinhos muito mais tarde, já que era ele quem tinha a obrigação de ir buscar água para as plantas, e isso não era uma tarefa muito fácil, lhe custava grandes caminhadas.
Essa mulher singular e forte, ao mesmo tempo que cavava açude e cortava árvores, mesmo aquelas que ninguém lidava, era também professora, portadora de notícias, exemplo de solidariedade e comadre de toda a vizinhança. Dona Judite viu no Carlinhos o seu seguidor, embora tivesse outros filhos biológicos e de coração.
Desde cedo criou uma estratégia para desenvolver o gosto pela poesia no garoto. Iniciava um poema para que ele o completasse. Assim Carlinhos cresceu fazendo versos e com uma missão, de não se estreitar diante das dificuldades.
Sua formação também foi bastante influenciada pelo rádio, por ser o único veiculo de comunicação com o mundo além Frei Miguelinho. O rádio ampliou o seu horizonte e trouxe o mundo para dentro do sertão. Por meio do rádio ele foi adquirindo novos conhecimentos, o que foi de extrema valia quando teve que ir para escola formal. Aquele menino que era discriminado "por vir do mato”, trazia consigo conhecimentos que os meninos da cidade não tinham. Seu gosto pelo rádio aumentou ainda mais!
No início da adolescência Carlinhos descobriu que a vida ainda iria exigir muito mais coragem dele. Sua avó adoeceu e teve que ser internada na cidade e o menino, que até então não havia passado uma noite longe da sua avó/mãe, se viu sozinho. Caminhou dias para ir à cidade visitá-la, pois não havia outra forma de vê-la. Ao chegar no hospital, o menino de doze anos teve que encarar uma outra batalha para conseguir chegar até sua avó que, já cega em função de uma diabetes não tratada, procurou encorajar o menino escondendo que não mais enxergava. O quadro evoluiu e ela veio a falecer.
Quando soube, pelos vizinhos, que dona Judite havia falecido correu para mato e lá ficou com sua dor. Descobriu que nos momentos mais difíceis da vida estamos irremediavelmente sós.
Após a morte de sua avó o menino Carlinhos não tinha mais o que fazer em Frei Miguelinho e veio para São Paulo. Só que quem desembarcou aqui não foi mais o menino Carlinhos e, sim, Carlos Galdino. O sofrimento o havia amadurecido.
Ao chegar em São Paulo foi à procura de seu pai. Apesar da resistência inicial, o menino/homem conseguiu ajuda de sua madrasta que o apoiou na busca do primeiro emprego. A determinação passada por sua avó o ajudou muito a encontrar formas de sobrevivência e logo foi construindo uma carreira profissional no mercado formal e, paralelamente, atuando no meio artístico como poeta, produtor musical e radialista.
Portanto, a exigência do emprego formal nunca o afastou da poesia e, como um bom geminiano, foi se adaptando a outro mundo e também conquistando novos aliados, sem nunca deixar de escrever. Dentre os aliados que ele conquistou na vida uma mulher, responsável pelo RH da empresa onde trabalhava, ele jamais esqueceu. Essa pessoa teve acesso a alguns de seus versos e, sem que ele soubesse, solicitou que a enviasse tudo que havia elaborado. Com esse material ela editou seu primeiro livro.
E assim, Carlos Galdino vem conseguindo conciliar os dois mundos, do trabalho formal e da arte. Por meio da sua arte tem cultivado jardins em locais onde a criatividade secou por falta de rega de estímulo. Contra uma realidade carente de cultura, faz da escrita e da música sua principal ferramenta. Hoje passou para o outro lado do rádio e de formado passa a ser formador.
Para cultivar jardins tão diversificados de expressão artística Carlos Galdino continua carregando água, só que agora ele sabe o quanto tem valia. Os saraus têm sido os locais privilegiados para o seu cultivo coletivo, porque as lições de solidariedade de dona Judite continuam ressoando em Carlos Galdino. E a semente plantada por ela continua florescendo!
Vai Carlos, continua sendo grande...
Maristela Miranda Barbara
Psicóloga, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC, com especialização cm Educação de Jovens e Adultos - KJA. Experiência de 15 anos na gestão e coordenação pedagógica de projetos de abrangência nacional na área de educação de jovens e adultos, incluindo a formação de educadores e a elaboração de material pedagógico. Autora de artigos e livros sobre o assunto, entre eles Experiências de Fducação Integral da CUT: Práticas em Construção. DP&A Editora. Rio de Janeiro

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