terça-feira, 21 de outubro de 2025

Cláudio Laureatti: o poeta-cenográfico que fez da palavra um palco itinerante

 

Cláudio Laureatti: o poeta-cenográfico que fez da palavra um palco itinerante

🖋️ Por Carlos Galdino
📅 São Paulo, 21 de outubro de 2025

 

 

Um sábado de silêncio e megafones

O sábado, 19 de outubro de 2025, amanheceu mais silencioso em São Paulo.
Não por falta de barulho — a cidade segue com suas buzinas, sirenes e vozes apressadas —, mas porque uma voz que atravessava todas elas se calou.
Cláudio Laureatti, poeta, ator, agitador cultural e fundador do lendário Sarau da Cesta, partiu sem aviso.
Pregou-nos a última peça, como quem encerra uma performance deixando o público entre o espanto e o aplauso.

Homem com as mãos na cabeça

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.Laureatti não foi um poeta qualquer. Era um desses raros artistas que transformam cada instante em gesto simbólico, cada palavra em palco.
Sua ausência não é silêncio — é reverberação. O eco de uma voz que, mesmo fora de cena, continua dizendo coisas que o mundo ainda precisa ouvir.

 

Entre o verbo e o corpo

Há poetas que escrevem; e há os que encarnam o poema.
Laureatti pertencia à segunda categoria.
Falava com o corpo inteiro — o corpo era seu microfone, sua pena, seu manifesto.

Nascido em São Paulo, em 1974, formou-se em Letras pela FFLCH-USP, onde concluiu também mestrado e doutorado em Literatura Brasileira.
Foi um acadêmico atípico: daqueles que levam o texto para o asfalto e trazem o asfalto para dentro da universidade.
Entre a biblioteca e o boteco, entre a teoria e a rua, Cláudio transitava com a naturalidade dos que pertencem a dois mundos e criam o terceiro.

Com registro de ator (DRT 25598 – SATED), encenou espetáculos como “Peabiru, o Caminho Suave” e “Carlos, não se mate!”.
Nas peças, o texto virava corpo, e o corpo, pensamento.
Publicou livros, participou de antologias e festivais literários, foi finalista do Projeto Nascente/USP e premiado com o Dom Quixote de la Perifa, concedido por coletivos da Zona Sul paulistana entre 2007 e 2008.

Homem falando no microfone

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.Mas acima de qualquer prêmio, Laureatti conquistou algo mais raro: o respeito das ruas.
Seu nome ecoa em saraus, bares, calçadas, centros culturais e auditórios — Cooperifa, Sarau da Paulista, Perifatividade, Sarau do Querô, Casa das Rosas, Patuscada, Rádio Cidadã, e em tantos outros palcos improvisados onde a poesia ainda resiste.
Era figura constante, e por vezes controversa, em cada um deles.
Não apenas frequentava os espaços: ele os transformava.

 

O Sarau da Cesta: o laboratório do verbo

Foi nos corredores da FFLCH-USP, no fim dos anos 1990, que Cláudio Laureatti e outros colegas decidiram criar um espaço de expressão chamado Sarau da Cesta — um gesto simples e revolucionário.
O nome, tirado de uma cesta de piquenique que servia de palco portátil, virou símbolo da arte coletiva, da insurgência estética e do humor como ferramenta crítica.

O Sarau da Cesta misturava crítica social, humor e experimentação estética. Era polêmico, alegre, controverso e profundamente cênico.
O evento extrapolou os muros da universidade e se tornou um dos principais tubos de ensaio poético de São Paulo.
Ali, a poesia dançava, a filosofia bebia café, o riso batia palma, e a plateia virava autora.Diagrama

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.cartaz original do “Sarau da Cesta – Tubo de Ensaio Poético”, colado em parede da Letras/USP.

De lá, saíram poetas, performers e ativistas que redefiniram a noção de literatura viva.
Laureatti era a alma cênica do projeto.
Sua fala atravessava as paredes e o tempo, lembrando que a poesia não é um luxo, é um gesto político.

 

O poeta cênico e o homem em conflito

Quem o viu em ação, sabe: Cláudio Laureatti era puro teatro.
Chegava à Casa das Rosas com um casco de televisão na cabeça, como se dissesse que a mídia estava vazia de sentido.
Usava cartola, megafone, instrumentos indígenas, sucatas, bandeiras — tudo o que pudesse virar metáfora e ruído.
Interrompia leituras, tirava o papel da mão das pessoas, fazia o público rir, pensar, às vezes se irritar.
Mas era exatamente nesse caos performático que sua arte ganhava força.

Tinha desafetos — e isso o fazia mais humano.
Tinha também uma oralidade que dominava o ar.
Sabia ser doce e ácido, generoso e provocador.
Como os grandes artistas, era cheio de contrastes.

Uma imagem contendo ao ar livre, estrada, edifício, pessoa

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.performance no Sarau da Paulista, com megafone e figurino performático.

E é preciso dizer: não é porque morreu que virou santo.
Mas também não é por ter sido polêmico que virou o diabo.
Era um homem — de carne, palavra e contradição.
E talvez seja justamente isso que o torna inesquecível.

 

Entre afeto e descontentamento

Eu tive amizade e desentendimento com Cláudio.
Discussões, divergências, pausas e reencontros.
A convivência com ele era um exercício de paciência e paixão, de admiração e choque.
Mas sempre houve respeito — e uma profunda ternura, mesmo no embate.

A penúltima vez que o vi foi na Câmara Municipal, durante o Encontro das Periferias.
A última, na Patuscada, na Morar do Coelho, em uma roda que misturava riso e ironia.
Eu disse:
— “Os saraus têm muitas panelas.”
E ele respondeu, sorrindo:
— “Quando não, né, Galdino?”

Ninguém sabia que estava doente.
E foi assim, sem ensaio nem despedida, que Laureatti fez sua última encenação: partir de repente, deixando um silêncio barulhento.

Homem com os braços para cima

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto. “Sarau da Cesta”, sorrindo diante da placa “Proibido cantar no banheiro (mas se quiser, pode)”.

 

Poemas para ouvir sua voz outra vez

“Sarau, Sarau, Sarau”

Em estado de graça
É hora de sua arte ganhar a praça
Tire seus poemas das gavetas
Apresente seu teatro aos vivos
Dance até raiar o dia
Contra a linha dura, a linha da cintura
Cultura é o que nos une.
(Fragmentos Mambembe, 2014)

 

“Manifesto para além dos saraus”

A gente não quer só poesia
A gente quer terra, comida, habitação
A gente quer a vida inteira
Para o homem, para a mulher,
Para o terceiro sexo no terceiro milênio
A gente quer causar incêndio
No coração da cidade
A gente não quer só poesia.
(Fragmentos Mambembe, 2014)

 

“Para além dos muros”

O problema não é o mundo, são os muros.
Muros que nos cercam e nos separam,
muros altos demais para o amor pular.
Do outro lado do morro,
preso no apartamento com televisão,
sonhei que posso passar spray
nas pedras dos muros das casas do mundo.
(Fragmentos Mambembe, 2014)

 

A mala, o megafone e o infinito

Em sua casa, ficou uma mala cheia de vestígios: livros, máscaras, chapéus, o megafone vermelho, bilhetes, panfletos de sarau.
Fragmentos de uma trajetória onde o riso e o protesto se encontravam.
Era como se cada objeto guardasse um pouco da energia cênica de um homem que fez da rua o seu palco e da poesia, um ato de resistência.

Bolsa em cima da mesa

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.a mala aberta com livros e o megafone — símbolo da itinerância poética.

 

O legado e o espelho

Cláudio Laureatti foi — e é — um tradutor de mundos.
Soube unir o pensamento acadêmico e a urgência da periferia, o discurso culto e o palavrão poético, a crítica social e a gargalhada.
Entre a universidade e o beco, ele construiu pontes.
Deixou marcas em projetos, livros, conversas e corações.

Mas sobretudo, deixou uma lição:
a poesia não é o contrário da vida — é o que a mantém em movimento.

Hoje, cada microfone aberto, cada sarau de esquina, cada leitura em praça pública carrega um pouco da energia que ele espalhou.
Porque Laureatti não morreu — multiplicou-se.

Grupo de pessoas em pé lado a lado

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Epílogo: nem santo, nem diabo — poeta

A morte de um artista costuma produzir mitos: os que o santificam e os que o demonizam.
Com Laureatti, nenhuma das duas versões lhe faz justiça.
Ele foi um homem intenso, inquieto, contraditório e, por isso mesmo, profundamente verdadeiro.
Não é porque morreu que virou santo.
Mas também não é por ter vivido como quis que virou o diabo.
Foi, simplesmente, poeta.

Um poeta que fez da vida um palco, e do palco, uma trincheira.
Que amou, brigou, riu, gritou, perdeu, venceu, performou — e, no fim, partiu como viveu: em cena.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

Que homenagem linda, você traduziu laureatti com poesia e pela poesia. Realmente Cláudio era diferenciado e rompia panelas rsrsrssr

Beth Brait Alvim disse...

Salve Laureatti. Bela e justa homenagem!

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